Fonte: Revista Prosa e Verso
Ou isto ou aquilo Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo … e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.
O santo no monte No monte, o Santo em seu manto, sorria tanto!
Sorria para uma fonte que havia no alto do monte e também porque defronte se via o sol no horizonte.
No monte o Santo em seu manto chora tanto!
Chora – pois não há mais fonte, e agora há um moro defronte que já não deixa do monte ver o sol nem o horizonte.
No monte o Santo em seu manto chora tanto!
(Duro muro escuro!)
Para ir à Lua Enquanto não têm foguetes para ir à Lua os meninos deslizam de patinete pelas calçadas da rua.
Vão cegos de velocidade: mesmo que quebrem o nariz, que grande felicidade! Ser veloz é ser feliz.
Ah! se pudessem ser anjos de longas asas! Mas são apenas marmanjos.
O lagarto medroso O lagarto parece uma folha verde e amarela. E reside entre as folhas, o tanque e a escada de pedra. De repente sai da folhagem, depressa, depressa olha o sol, mira as nuvens e corre por cima da pedra. Bebe o sol, bebe o dia parado, sua forma tão quieta, não se sabe se é bicho, se é folha caída na pedra. Quando alguém se aproxima,
— oh! Que sombra é aquela? — o lagarto logo se esconde entre folhas e pedra.
Mas, no abrigo, levanta a cabeça assustada e esperta: que gigantes são esses que passam pela escada de pedra? Assim vive, cheio de medo, intimidado e alerta, o lagarto (de que todos gostam) entre as folhas, o tanque e a pedra.
Cuidadoso e curioso, o lagarto observa. E não vê que os gigantes sorriem para ele, da pedra. Assim vive, cheio de medo, intimidado e alerta, o lagarto (de que todos gostam) entre as folhas, o tanque e a pedra.
A chácara do Chico Bolacha Na chácara do Chico Bolacha o que se procura nunca se acha!
Quando chove muito, O Chico brinca de barco, porque a chácara vira charco.
Quando não chove nada, Chico trabalha com a enxada e logo se machuca e fica de mão inchada.
Por isso, com Chico Bolacha, o que se procura nunca se acha.
Dizem que a chácara do Chico só tem mesmo chuchu e um cachorrinho coxo que se chama Caxambu.
Outras coisas, ninguém procura, porque não acha. Coitado do Chico Bolacha!
Pregão do vendedor de lima Lima rima pela rama lima rima pelo aroma.
O rumo é que leva o remo. O remo é que leva a rima.
O ramo é que leva o aroma porém o aroma é da lima.
É da lima o aroma a aromar?
É da lima-lima lima da limeira do auro da lima o aroma de ouro do ar!
Lua depois da chuva Olha a chuva: molha a luva.
Cada gota de água Como um bago de uva.
A chuva lava a rua. A viúva leva o guarda-chuva e a luva.
Olha a chuva: molha a luva e o guarda-chuva
da viúva.
Vai a chuva e chega a lua:
A Pombinha da Mata Três meninos na mata ouviram uma pombinha gemer.
“Eu acho que ela está com fome”, disse o primeiro, “e não tem nada para comer.”
Três meninos na mata ouviram uma pombinha carpir.
“Eu acho que ela ficou presa”, disse o segundo, “e não sabe como fugir.”
Três meninos na mata ouviram uma pombinha gemer.
“Eu acho que ela está com saudade”, disse o terceiro, “e com certeza vai morrer.”
O passarinho do sapé P tem papo o P tem pé. É o P que pia?
(Piu!)
Quem é? O P não pia: O P não é. O P só tem papo e pé.
Será o sapo? O sapo não é.
(Piu!)
que fez seu ninho no sapé.
Pio com papo. Pio com pé. Piu-piu-piu: Passarinho.
Passarinho no sapé.
A folha na festa Esta flor não é da floresta.
Esta flor é da festa, esta é a flor da giesta.
É a festa da flor e a flor está na festa.
(E esta folha? Que folha é esta?)
Esta folha não é da floresta.
Esta folha não é da giesta.
Não é folha da flor. Mas está na festa.
Na festa da flor na flor da giesta.
Uma flor quebrada A raiz era escrava, descabelada negrinha que dia e noite ia e vinha e para a flor trabalhava.
E a árvore foi tão bela! Como um palácio. E o vento pediu um casamento a grande flor amarela.
Mas a festa foi breve, pois era um vento tão forte que em vez de amor trouxe morte à airosa flor tão leve.
E a raiz suspirava com muito sentimento. Seu trabalho onde estava? Todo perdido com o vento.
O violão e o vilão Havia a viola da vila. A viola e o violão.
Do vilão era a viola. E da Olívia o violão.
O violão da Olívia dava vida à vila, à vila dela.
O violão duvidava da vida, da viola e dela.
Não vive Olívia na vila. Na vila nem na viola. O vilão levou-lhe a vida, levando o violão dela.
No vale, a vila de Olívia vela a vida no seu violão vivida e por um vilão levada.
Vida de Olívia — levada por um vilão violento. Violeta violada pela viola do vento.
Canção da flor da pimenta A flor da pimenta é uma pequena estrela, fina e branca, a flor da pimenta.
Frutinhas de fogo vêm depois da festa das estrelas. Frutinhas de fogo.
Uns coraçõezinhos roxas, áureos, rubras, muito ardentes. Uns coraçõezinhos.
E as pequenas flores tão sem firmamento jazem longe. As pequenas flores…
Mudaram-se em farpas, sementes de fogo tão pungentes! Mudaram-se em farpas.
Novas se abrirão, leves, brancas, puras, deste fogo, muitas estrelinhas
O tempo do temporal O tempo do temporal. O tempo ao tempo ao ar e ao pó do temporal. E o doente ao pé do templo. E o temporal no poente. E o pó no doente.
O tempo do doente.
O ar, o pó do poente. O temporal do tempo.
A avó do menino A avó vive só. Na casa da avó o galo liró faz “cocorocó!” A avó bate pão-de-ló e anda um vento-t-o-tó na cortina de filó.
A avó vive só. Mas se o neto meninó mas se o neto Ricardó mas se o neto travessó vai à casa da avó, os dois jogam dominó.
O último andar No último andar é mais bonito: do último andar se vê o mar. É lá que eu quero morar.
O último andar é muito longe: custa-se muito a chegar. Mas é lá que eu quero morar.
Todo o céu fica a noite inteira sobre o último andar. É lá que eu quero morar.
Quando faz lua, no terraço fica todo o luar. É lá que eu quero morar.
Os passarinhos lá se escondem, para ninguém os maltratar: no último andar.
De lá se avista o mundo inteiro: tudo parece perto, no ar. É lá que eu quero morar:
no último andar.
Cecília Meireles, no livro “Ou isto ou aquilo”. [ilustrações de Fernando Correia Dias]. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira; FNDE/MEC, 1990.
Comentários